
É em terras de fronteira que se dá o reencontro de dois irmãos, separados por dez anos de ausência e reunidos pela morte recente do pai. Sobre cada um deles, o pó de caminhos estrangeiros, a princípio reticentes, desconhecidos um do outro: poeira que se encontra, mas não se mistura.
“Chorávamos terra ontem à noite” resume, em uma noite dentro da sala pequena de uma casa no interior, a geografia de duas percepções divergentes sobre uma realidade já partilhada no passado e agora estranha.
O abismo entre os mundos percebidos pelos dois personagens se revela no diálogo entrecortado: nem mesmo o uso da palavra, artefato dos mais primários da tecnologia da comunicação, é capaz de compor o entendimento recíproco. Via de mão única, apenas presentifica vivências solitárias de cada um dos irmãos; não co-move e, ao contrário de transmitir, conserva encerrada em si a visão de mundo e a consciência da própria história que têm, individualmente, Luis e Antonio.
Nesse embate de (e por) domínios, nenhuma versão abraça, isoladamente, a complexidade da realidade. A situação de Antonio e Luis é um retrato universal da situação da percepção humana, nos termos do legado de Merleau-Ponty e da fenomenologia. Terras de ninguém.
Muito embora cada personagem se situe num campo exclusivo de simbologias, a densidade da narrativa transcende qualquer possível leitura maniqueísta. Num sentido mais profundo, a própria noção de realidade é posta em xeque a partir do estado em que se (des) encontram os personagens. Contemplando horizontes que se compõem pelo olhar subjetivo sobre a realidade, para ambos faz-se de areia, pó e poeira a tênue linha divisória entre realidade e ilusão.
À maneira de Proust, o texto de Eduardo Ruiz permite discutir, implícito, um princípio de indiferenciação entre domínios do real e do imaginário. Desaparece, em muitos dos momentos dos estados psíquicos dos personagens, a diferença entre imagens imaginárias e autênticas, fantasia e concretude real dos fatos. O papel da memória como substrato da percepção do passado aflora e influi diretamente na percepção do presente – seja para aprisionar, como se vê em Luis, seja para renegar o passado, caso de Antonio.
Aqui, o espetáculo toca o projeto estético da modernidade, a exemplo de Baudelaire, para quem a arte deve ser, principalmente, “mnemônica”, conciliando memória e imaginação, abrindo espaço à fantasia e livrando-se das impressões imediatas como única fonte válida do objeto artístico. A arte ancorada no imaginário denota a influência fundamental que este último exerce sobre o domínio da memória, sobre a construção da lembrança, sobre a orientação do sujeito que rememora, que tenta construir para si um espaço interno próprio da experiência.
Realidade e ilusão entrecruzam-se na cartografia que (des)orienta os dois irmãos vindos, um para o outro, de terras grandes. Homens que, dentre outras feridas, carregam a dor da alteridade incomunicável – ponto de encontro sincero, talvez dos únicos, entre os personagens. Incomunicabilidade de que se isenta, no entanto, o público que, sendo humano, é mortal e portanto é também terra.
Carol (querida presença em quase todos os dias de espetáculo)