terça-feira, 31 de março de 2009

TER.RA (lat. Terra) solo, chão; terra solta, pó, poeira; lugar ou localidade onde se nasceu ou onde se habita; domínio, propriedade; argila de que se servem os escultores para os seus trabalhos, barro; o mundo, a vida temporal. Terra de ninguém: espaço entre duas trincheiras inimigas, não dominado por nenhuma delas. Terras grandes: a terra longínqua, desconhecida, o resto do mundo. Ficar sobre a terra: viver, existir. Largar terra para as favas: fugir. Meter (alguém) pela terra dentro: contundi-lo com palavras veementes ou raciocínios vigorosos; fazê-lo embatucar. Ser terra: ser mortal.

É em terras de fronteira que se dá o reencontro de dois irmãos, separados por dez anos de ausência e reunidos pela morte recente do pai. Sobre cada um deles, o pó de caminhos estrangeiros, a princípio reticentes, desconhecidos um do outro: poeira que se encontra, mas não se mistura.
“Chorávamos terra ontem à noite” resume, em uma noite dentro da sala pequena de uma casa no interior, a geografia de duas percepções divergentes sobre uma realidade já partilhada no passado e agora estranha.
O abismo entre os mundos percebidos pelos dois personagens se revela no diálogo entrecortado: nem mesmo o uso da palavra, artefato dos mais primários da tecnologia da comunicação, é capaz de compor o entendimento recíproco. Via de mão única, apenas presentifica vivências solitárias de cada um dos irmãos; não co-move e, ao contrário de transmitir, conserva encerrada em si a visão de mundo e a consciência da própria história que têm, individualmente, Luis e Antonio.
Nesse embate de (e por) domínios, nenhuma versão abraça, isoladamente, a complexidade da realidade. A situação de Antonio e Luis é um retrato universal da situação da percepção humana, nos termos do legado de Merleau-Ponty e da fenomenologia. Terras de ninguém.
Muito embora cada personagem se situe num campo exclusivo de simbologias, a densidade da narrativa transcende qualquer possível leitura maniqueísta. Num sentido mais profundo, a própria noção de realidade é posta em xeque a partir do estado em que se (des) encontram os personagens. Contemplando horizontes que se compõem pelo olhar subjetivo sobre a realidade, para ambos faz-se de areia, pó e poeira a tênue linha divisória entre realidade e ilusão.
À maneira de Proust, o texto de Eduardo Ruiz permite discutir, implícito, um princípio de indiferenciação entre domínios do real e do imaginário. Desaparece, em muitos dos momentos dos estados psíquicos dos personagens, a diferença entre imagens imaginárias e autênticas, fantasia e concretude real dos fatos. O papel da memória como substrato da percepção do passado aflora e influi diretamente na percepção do presente – seja para aprisionar, como se vê em Luis, seja para renegar o passado, caso de Antonio.
Aqui, o espetáculo toca o projeto estético da modernidade, a exemplo de Baudelaire, para quem a arte deve ser, principalmente, “mnemônica”, conciliando memória e imaginação, abrindo espaço à fantasia e livrando-se das impressões imediatas como única fonte válida do objeto artístico. A arte ancorada no imaginário denota a influência fundamental que este último exerce sobre o domínio da memória, sobre a construção da lembrança, sobre a orientação do sujeito que rememora, que tenta construir para si um espaço interno próprio da experiência.
Realidade e ilusão entrecruzam-se na cartografia que (des)orienta os dois irmãos vindos, um para o outro, de terras grandes. Homens que, dentre outras feridas, carregam a dor da alteridade incomunicável – ponto de encontro sincero, talvez dos únicos, entre os personagens. Incomunicabilidade de que se isenta, no entanto, o público que, sendo humano, é mortal e portanto é também terra.
Carol (querida presença em quase todos os dias de espetáculo)

domingo, 29 de março de 2009

Primeiro, a idéia. Embutida ou explícita, não se sabe. Mas ela incomoda se conservada. Quer sair e romper as barreiras entre o haver e o existir. Emana por tantas células empenhadas em expulsá-las, por pulsos fortes, mãos delicadas e então: a PALAVRA. Naquele vazio do papel cheio de traços... Pronto; nasceu.

Depois, a história. A narrativa crua de infindas interpretações. Não cabe na disposição cardinal as dimensões deste texto. As nuances escondidas aguçam minha curiosidade. Desculpem, mas peço silêncio. Não adianta falar nada. Deixa entrar ao que se assiste. Só desnudem-se antes. Desvirginem-se lá. Sem julgamentos; sem defesas.

A invasão permitida consiste na consciência brutal de que somos compostos das mesmas células do brilhante autor, sob as perspectivas da exímia diretora, atrás das inusitadas intenções dos três atores e ponto. Porque de quantos Luís Antônios somos vítimas e acusados? Quantas Lavínias interceptam nossas atitudes? Quantas melodias deixamos chorar ao fundo ou regar nossas trilhas nem sempre sonoras? Desculpem-me, mas de quantos Luíses é feito o Antônio e quantos Antônios aparecem no Luís nos momentos cruciais do digno diálogo? Códigos... desconcertantes sem respostas... Irmãos.

Mistério, destreza, realidade, moral, ciúme, covardia. Estão invocados os incômodos que nos rondam e repito: deixem entrar pra calar, pra rasgar, pra doer. Cada detalhe e um espetáculo diferente... Cada diferença que um arrepio flagra a pele e convida uma lágrima a sair pra ceder mais espaço. Tanta sutileza contida quanto brutalidade declarada ali, diante de mim, na arte de fazer existir uma única idéia. Que se multiplica do papel aos primeiros leitores (elenco) e se re-inventa ao bel prazer nos expectadores que souberem absorver-se. Digo isto porque o ônus da prova consta do sucesso na ausência de aplausos, que pela primeira vez cede sim ao silêncio dos que renderam-se. Digo isto porque o ônus da dúvida consta pela arena exposta, pela platéia escassa, pelo cenário simples, pelo café não servido, pela luz fraca, todos cedentes à nobreza da criação.

Fico imaginando quantas surpresas eu ainda teria. Em quantas faces Gustavo, Eduardo e Bruno se desdobrariam pra me conduzir ao delírio de vê-los me esclarecer a verdade. Em que momento eu – de tanto perseguir suas respirações ou a ausência delas - desvendaria o real mistério inicialmente imaginado; ou me decepcionaria por descobri-lo nunca o feito. Fico pensando o que nos faz vendermo-nos por um sonho (fuga) ou arrependermo-nos por uma eternidade (volta) entre as duas faces, nossas.

E entre artistas que entram em mim com suas idéias, interajo com as minhas em mutação constante, porque pra idéias não dependemos de códigos... genéticos. Mas da percepção das células - estas sim irmãs - pulsando ali, junto, vibrando, como que querendo invadir a cena, beijar o palco molhado de suor, lamber as palavras daquela forma ditas, acariciar a melodia que por si grita; perdoar-me por tudo que não foi feito de fato.

Porque emocionar é mais que toque, som, imagem e choro. É entrar em alguém em silêncio e permanecer, inovando a cada virada em que se imaginava já estar pleno. E recriar, desvendar, enlouquecer... Aplauso é retribuição indigna. Já que entraram, peguem o que de fato é de valor: NOSSO SILÊNCIO.

Quantos Luís Antônios? Espero continuar contando, ainda que sozinha, e espero que entendam...
Atenciosamente, Marcelle Araujo

sexta-feira, 27 de março de 2009

A estréia no Viga foi com casa cheia. Agradecemos a todos os amigos e ao público pela presença, afinal de contas sem público o teatro não existe. Nosso ofício é para ser visto!
Um abraço

quarta-feira, 4 de março de 2009

O cântico da terra

Eu sou a terra, eu sou a vida. Do meu barro primeiro veio o homem.De mim veio a mulher e veio o amor.Veio a árvore, veio a fonte.Vem o fruto e vem a flor.
Eu sou a fonte original de toda vida.Sou o chão que se prende à tua casa.Sou a telha da coberta de teu lar.A mina constante de teu poço.Sou a espiga generosa de teu gadoe certeza tranqüila ao teu esforço.
Sou a razão de tua vida.De mim vieste pela mão do Criador,e a mim tu voltarás no fim da lida.Só em mim acharás descanso e Paz.
Eu sou a grande Mãe Universal.Tua filha, tua noiva e desposada.A mulher e o ventre que fecundas.Sou a gleba, a gestação, eu sou o amor.
A ti, ó lavrador, tudo quanto é meu.Teu arado, tua foice, teu machado.O berço pequenino de teu filho.O algodão de tua vestee o pão de tua casa.
E um dia bem distantea mim tu voltarás.E no canteiro materno de meu seiotranqüilo dormirás.
Plantemos a roça. Lavremos a gleba.Cuidemos do ninho,do gado e da tulha.Fartura teremose donos de sítiofelizes seremos.
Cora Coralina
contribuição do Márcio nosso querido cenógrafo